Com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), uma ferramenta computacional tem ajudado pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e colaboradores internacionais a desenvolver uma vacina terapêutica contra o HIV, vírus causador da Aids, que já começou a ser testada em pacientes no Brasil.
Em artigo divulgado recentemente na plataforma medRxiv, ainda em versão preprint (sem revisão por pares), o grupo validou a plataforma computacional e propôs adaptar a metodologia para criar uma formulação capaz de auxiliar na recuperação de pessoas com a forma grave da COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus.
“A vacina terapêutica seria indicada para pacientes que começam a apresentar queda na saturação de oxigênio, o que pode ocorrer por volta do sétimo dia após o início dos sintomas. A ideia seria evitar que o quadro progrida para insuficiência respiratória”, salienta Ricardo Sobhie Diaz, professor da Disciplina de Infectologia na Escola Paulista de Medicina (EPM-Unifesp) e coautor do estudo, à Agência Fapesp.
Apoiado pela Fapesp, Diaz tem se dedicado a buscar, nos últimos oito anos, a “cura esterilizante” da Aids, ou seja, a eliminação completa do HIV do organismo. O tratamento atual, feito com um coquetel de fármacos, consegue zerar a carga viral. Mas o HIV pode voltar a se replicar caso a terapia seja interrompida.
Metodologia
Uma das estratégias pesquisadas na Unifesp consiste em treinar determinadas células do sistema imunológico para “caçar” o vírus no organismo – mesmo que ele esteja na fase latente (inerte dentro dos linfócitos, sem replicação) ou escondido em regiões do organismo em que os medicamentos antirretrovirais não conseguem chegar. O trabalho conta com a participação de cientistas da Itália, da Alemanha e do Egito.
“Desenvolvemos uma vacina de células dendríticas, também conhecidas como ‘apresentadoras de antígenos’. Essas células de defesa têm o papel de ensinar os linfócitos do tipo T-CD4 a reconhecer partículas de vírus, bactérias ou qualquer outro invasor. Estes, por sua vez, induzem os linfócitos do tipo T-CD8, também chamados citotóxicos, a buscar e a eliminar as células infectadas por aquele antígeno específico”, explica Diaz.
No estudo da Unifesp, o “treinamento” das células dendríticas é feito na bancada do laboratório, de forma personalizada. Para isso, os pesquisadores fazem o sequenciamento do HIV presente em cada paciente, com foco em uma região do genoma viral conhecida como GAG (antígeno grupo-específico, na sigla em inglês), considerada altamente imunogênica (capaz de induzir resposta imune).
Sequenciamento dos genes
Também é analisado o perfil genético de cada participante, por meio do sequenciamento dos genes que codificam os antígenos leucocitários humanos (HLA, na sigla em inglês). O objetivo, nesse caso, é descobrir quais são as proteínas usadas pelas células dendríticas para fazer o reconhecimento e a apresentação dos antígenos.
“Desenvolvemos uma ferramenta computacional chamada Custommune para selecionar, com base nos dados genéticos, nanômetros virais [peptídeos formados por nove aminoácidos] capazes de induzir uma forte resposta antiviral naquele indivíduo. E então sintetizamos esses peptídeos em laboratório e os colocamos para interagir in vitro com as células dendríticas”, conta Diaz.
As células dendríticas são obtidas a partir de uma amostra de sangue do paciente a ser tratado. Os pesquisadores extraem do soro sanguíneo um tipo de leucócito denominado monócito e o expõem a determinadas citocinas (proteínas que atuam como sinalizadores do sistema imune) que induzem a transformação.
Após o treinamento, as células dendríticas são injetadas na região inguinal e nas axilas dos pacientes para que se disseminem pelo sistema linfático, onde deverão “capacitar” os linfócitos para eliminar o HIV.
Resultados promissores
A metodologia já foi testada em dez pacientes, que receberam três doses da vacina. Análises preliminares indicam que a formulação promoveu uma resposta antiviral no organismo.
“Após cada dose, colhemos uma nova amostra de sangue dos voluntários e extraímos os linfócitos T-CD4 e T-CD8. Em seguida, colocamos essas células para interagir, in vitro, com os mesmos peptídeos virais usados na composição da vacina terapêutica. Observamos que os linfócitos, nessa condição, passavam a produzir moléculas como interleucina-2, fator de necrose tumoral alfa e interferon gama – citocinas pró-inflamatórias características de uma resposta antiviral. A cada dose da vacina foi possível observar um aumento linear e significativo na produção das citocinas”, conta Diaz.
Como controle, os pesquisadores colocaram os leucócitos dos pacientes para interagir com antígenos da bactéria Staphylococcus aureus e, nesse caso, não houve produção de citocinas.
Todos os participantes do estudo já faziam uso do coquetel antiaids (antirretrovirais) há pelo menos dois anos e, portanto, não foi possível avaliar o efeito da vacina em termos de redução da carga viral, que já era indetectável desde o início do estudo. O tratamento com antirretroviral foi interrompido nessas pessoas e, em duas delas, o vírus não voltou a ser detectado no plasma sanguíneo na maior parte das amostras coletadas para análise.
Teste clínico
O grupo pretende ampliar o teste clínico para um grupo de 50 voluntários, mas os planos foram adiados por causa da pandemia de COVID-19. A proposta é combinar a vacina terapêutica com o coquetel de antirretrovirais padrão acrescido de dois fármacos normalmente não usados no tratamento da Aids.
No caso da COVID-19, explica Diaz, a vacina terapêutica também teria de ser personalizada para cada paciente. “No artigo, o pesquisador Andrea Savarino [Università Cattolica del Sacro Cuore, Itália] simulou o uso da ferramenta para selecionar antígenos do SARS-CoV-2 que poderiam ser usados em uma formulação. A plataforma computacional permite desenvolver vacinas de células dendríticas, de peptídeos ou de DNA”, conclui Diaz.
O artigo (em inglês) pode ser lido em https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.25.20079426v1.